domingo, 21 de fevereiro de 2010

Fuja do filhocentrismo

A vida familiar transformou-se radicalmente.
Pais e filhos encontravam-se três vezes ao dia,
no caso dos papais, ou viam-se o dia todo, no
caso das mamães. Agora é tudo diferente
Edgar Flexa Ribeiro
Ilustração: Will
A cena é costumeira. A mãe vai ao shopping center trocar um vestido e não ousa voltar para casa sem um brinquedo novo para o filho. O pai, por sua vez, sente-se na obrigação de pôr em casa tudo o que a TV sugere que as crianças deveriam ter. E o faz na certeza de que seus filhos serão felizes se ele assim proceder. Essa mamãe e esse papai, que tanto fazem, e trazem, para agradar à criança ou às crianças que têm em casa, podem estar mais errados do que certos — sobretudo quando essa meninada tem mais brinquedos do que conseguem usar. Casos assim estão se tornando freqüentes e já podem ser catalogados como uma deformação contemporânea: o filhocentrismo, forma nova e pouco saudável de agir na educação de um filho.
Restam até hoje em nossa memória resquícios de um Brasil passado, que surge em nosso retrovisor povoado de virtudes que não encontramos mais: vida tranqüila e previsível, cidade acolhedora, a casa onde todos se reuniam em volta da mesa ao menos uma vez por dia, a presença do pai e da mãe, e todos sabendo o que devia ser feito. Num curto período tudo virou de cabeça para baixo. Inverteu-se a relação entre população rural e urbana, as cidades incharam, as relações econômicas se alteraram e, sobretudo, a mulher ingressou no mercado de trabalho. Em decorrência, a estrutura social e a vida familiar transformaram-se radicalmente. Pais e filhos encontravam-se três vezes ao dia, no caso dos papais, ou viam-se o dia todo, no caso das mamães. Agora é tudo diferente.
O filhocentrismo guarda parentesco distante com a superproteção, mas é importante saber distingui-los. Pais superprotetores sempre houve, incapazes de um mínimo de objetividade, preferindo passar a mão na cabeça do pimpolho. Semeiam ventos, e geralmente são os filhos superprotegidos que colhem tempestades. As vítimas do filhocentrismo são figuras mais recentes, inseguras na sua condição de pais, atordoadas por uma realidade sempre nova, sentindo-se pessoalmente culpadas por não poder reproduzir para o filho a vida que tiveram em criança.
As ações de ambos podem ser exteriormente parecidas, ou até as mesmas. Mas os filhocêntricos se anulam e se vêem incapazes de lidar com o dever de dizer não ao filho, de estabelecer limites, de sinalizar o espaço da criança a partir de seu próprio espaço de pais, pois incineram a própria identidade sob o pretexto de amar a criança desenfreadamente. Esses negam aos filhos sua própria imagem de pai. Também conspiram contra a construção da identidade dos filhos. É visível na sociedade atual uma saudável preocupação com as crianças. Protegidas com especial cuidado pelo Código Nacional de Trânsito, cercadas de toda sorte de atenções, talvez, como nunca no passado, elas sejam vistas hoje como elo entre nós e o futuro. Um eloqüente sinal disso é que finalmente a educação extravasa dos discursos oficiais para se transformar numa preocupação cotidiana e concreta.
Mas, quando a criança passa a ser a única razão de ser do casal e atender o pequerrucho sempre, sem limites, passa a ser uma fixação, estamos lidando com algo muito diferente. Não se está propondo que pais abandonem os filhos, ou seja, que esqueçam que lá em casa tem alguém que precisa de atenção. De forma alguma. Quer-se aqui apenas sugerir aos pais que mantenham uma vida própria e zelem por ela. Até para que seus filhos saibam fazer o mesmo quando chegar a hora deles.
Edgar Flexa Ribeiro é advogado e diretor do Colégio Andrews, do Rio de Janeiro

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